A dor dos outros

Meu pai morreu há mais de 20 anos. Era um romântico, eu acho. Ele sempre dizia que, quando morresse, minha mãe deveria ouvir uma música determinada, para se lembrar dele. A música se chama Última lembrança, e fala de um amor que se eterniza pela poesia e pela música. Tinha esse disco lá em casa.

Bem, quando ele morreu, com 70 anos, ela não ouviu a música, mas colocamos a letra como epitáfio na sepultura dele. Minha mãe demorou anos para se recuperar da morte do meu pai, obviamente. Viveu mais tempo com ele do que sozinha.

Lembrei-me disso porque ontem faleceu o pai de uma amiga muito querida. Como meus pais, o casal se dava bem. Os filhos estão arrasados, mas a mãe está ainda mais. Compreensível. Coloco-me no lugar dela e posso entender a dor.

Foi Covid. 

Há pouco mais de uma semana, se foi a irmã de outra amiga. Antes disso havia sido um dos melhores amigos do meu cunhado; antes ainda, dois primos da minha irmã e, antes, duas tias e um primo do meu marido. Nenhuma dessas pessoas era próxima a mim, em alguns casos eu nem as conhecia pessoalmente, mas as perdas sofridas por pessoas conhecidas nos tocam de alguma forma. Ou deveriam nos tocar.

A perda mais triste de toda a minha vida não foi a perda do meu pai, embora ele tenha sido a pessoa mais próxima de mim a morrer, até hoje. A perda mais triste que já vivenciei foi a morte de um amigo (mais amigo do meu marido do que meu), há muitos anos. Éramos todos jovens, em torno dos 30 anos. Morreu em um acidente besta de carro, perto da casa dele. Era recém casado, a esposa estava grávida de alguns meses. A dor dela mexeu muito comigo, e acho que com todas as pessoas que estavam perto naquele momento. Mesmo as que eram mais próximas dele do que eu, acho que naquele momento sentiram mais a dor dela do que a dor da perda do amigo. Porque a dor dela era a dor que poderia ter sido de qualquer um de nós. Qualquer um de nós poderia estar naquele lugar de perder a pessoa com quem construiu um sonho de futuro. Qualquer um de nós poderia estar no lugar dela e ficar sem chão, sem norte.

Não há como não me lembrar disso diante do cenário que se apresenta no Brasil. A impressão que tenho é que as pessoas não conseguem se imaginar no lugar dos outros, logo, não se importam com a dor alheia. “Quer que eu faça o quê?” é, infelizmente, a frase símbolo desse comportamento e, mais infelizmente ainda, foi dita pelo presidente da república.

Não, não proponho que absorvamos todas as dores do mundo e nos deprimamos com elas, mas que tentemos nos colocar só um pouco no lugar de quem já perdeu ou pode perder pessoas queridas e pensemos que poderíamos ter sido nós, cada um de nós, no lugar dessas pessoas.

Algumas das pessoas que morreram de Covid, que eu citei acima, eram extremamente cuidadosas. Outras negavam o vírus e os cuidados necessários. Todas foram igualmente atingidas por ele.

Onde quero chegar?

Quanto mais gente exposta ao vírus, mais próximo ele fica inclusive de quem toma todos os cuidados. Por isso tem-se falado tanto em pacto coletivo, em responsabilidade social, etc. Por que não se trata de você ter ou não medo de morrer, mas sim de responsabilidade com as outras pessoas.

Tenho visto (pelas redes) muitas pessoas viajando e passeando, e isso tem me incomodado. Não sei dos cuidados que elas estão tendo, nem sei se as viagens e passeios que fizeram foram “seguras” — bem entre aspas, porque as diretrizes das autoridades sanitárias sérias (o atual Ministério da Saúde não conta, nesse caso) não são “viaje com segurança”, ou “passeie com segurança”, mas “fique em casa”. O que sei é que outras pessoas veem essas viagens e passeios e, ou se sentem idiotas (ainda que momentaneamente) por ainda estarem em casa, (meu caso), ou acham que o pior já passou porque, afinal, se fulano, que é tão legal, ou tão sabido, ou tão bem-sucedido, ou tão consciente, ou tão cuidadoso, ou tão sei lá o que, está viajando/passeando, eu também vou.

Entendem a responsabilidade coletiva? Todo mundo está muito cansado de ficar em casa, de não poder passear livremente, de não poder ir a lugares que antes ia, de não poder tirar as férias programadas, etc, etc. Mas demonstrações públicas de desrespeito às regras não ajudam nada, ao contrário, incentivam outras pessoas a fazerem o mesmo. Mesmo que não seja essa a intenção de quem as faz.

Pense que você sempre influencia algumas pessoas, mesmo que não seja um influencer. Quanto mais poder você tem, quanto mais gente te admira, mais gente segue seu exemplo. E, nesse caso, seguir seu exemplo será uma roubada, uma roubada coletiva, porque quanto mais gente desrespeita a regra, mais o vírus se espalha.

Ah, mas eu não aguento mais, estou enlouquecendo! Muita gente não aguenta mais, e se todo mundo resolver fazer o que quer, não sairemos dessa tão cedo. Não é momento para fazermos o que queremos, é momento para fazermos  que precisa ser feito.

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