Luíza

 

Subi, ainda meio esbaforida, a escadaria de mármore do antigo sobrado transformado em clínica médica. O metrô estava lotado e eu havia demorado para conseguir um Uber que me levasse da estação à ruazinha estreita e aparentemente residencial. Uma tempestade se formava em algum lado da cidade e o céu parecia se preparar para desfazer, em uma enxurrada daquelas, o calor da última semana.

De que ano seria aquela edificação?  Década de 30?  Mesmo com pressa, não pude deixar de reparar na beleza da construção. Porque beleza é uma coisa que todo mundo aprecia, né, não? Claro, claro, é sempre relativa. Eu, por exemplo, me sinto mais atraída pela arquitetura do início do século XX do que pelos prédios de vidro e aço da Berrini.

O guarda corpo no qual apoiava minha mão ao subir era uma bela obra de serralheria vintage, perfeitamente conservada. Nada de tinta sobre tinta, nada de rugosidades e acabamentos mal feitos. De baixo até em cima, o acabamento era perfeito e a camada de tinta tinha milimetricamente a mesma espessura em cada dobrinha do ferro. Nenhuma gotícula havia escorrido durante a pintura.

Ao final das escadas, me deparei com um hall de tamanho considerável e quatro portas brancas muito sólidas, numeradas de 1 a 3. Na última, uma plaquinha indicava um banheiro unissex. Mal tive tempo de ver tudo isso e a porta do consultório 1 se abriu.

— Luísa, boa tarde, como vai? — A médica, que me fora indicada por uma amiga, sorria, polida, estendendo-me a mão fina e de unhas bem feitas. Os cabelos, já um pouco grisalhos, eram muito bem cortados. Magra e baixa, notei que vestia uma camisa de seda clara por baixo do jaleco e tinha cara de quem nunca tinha ido a uma cartomante na vida, ou pedido para uma amiga ler um tarô. Nem por brincadeira.  E estava usando sapatos de salto.

— Boa tarde, Dra. Alice. Estou bem, obrigada. E você? — Retribuí o cumprimento. A mão dela era firme — Fora esse calor, né? – Eu sentia o suor escorrendo pelas minhas costas, sob a camiseta colorida. Se estivesse em casa, a primeira coisa que teria feito seria tirar aquela composição de colares que eu usava e que se enroscavam nos cabelinhos da minha nuca, apesar do rabo de cavalo. Sou um ser descabelado. Não importa o que eu faça com meus cabelos, meia hora depois estarei descabelada novamente.

Dra. Alice me convidou a sentar. Larguei minha bolsa na cadeira da esquerda e me sentei na ponta da cadeira da direita, empertigada, com as mãos cruzadas sobre a mesa da médica. Ela usava, no pescoço, uma correntinha de ouro com um pingente pequeno em formato de gota. Um brilhantezinho, talvez? Não, não uma gota gorducha, rechonchuda, exuberante. Era uma gota magra, discreta, elegante, slim.

  Vamos lá, diga-me o que lhe trouxe aqui.

— Tenho hipotireoidismo e histórico de câncer de tireoide na família, por isso faço controle anual. Aparentemente está tudo ok, minha ginecologista já pediu uma ultrassonografia. Só rotina mesmo. Trouxe os exames todos do checkup anual — Falei enquanto mexia na bolsa e pegava o envelope de papel branco, com o logo azul do laboratório, e o estendia a ela.

— Toma alguma medicação?

 

— Sim, 75mg de levotiroxina sódica ao dia.

A médica demorou-se alguns minutos examinando a papelada que eu lhe entregara. Silenciosa, lia e fazia anotações em seu computador de tela plana, grande, clara e... slim.

Tudo na sala, aliás, era slim e clean. Até a atmosfera. A mesa de madeira clara não tinha nada desnecessário sobre si. Uma caneta — e eu ri em silêncio pensando na minha própria mesa de trabalho, com potes e mais potes de canetas coloridas —, um bloco de anotações todo elegante, uma orquídea — não aquelas amarelas, mais comuns, com várias florzinhas em cachinhos, mas uma em tons de branco e púrpura, só duas flores e alguns botões na longa haste, —  e uma moringa de vidro.  Em uma das paredes havia uma aquarela grande, retratando uma mulher. Ao lado do quadro, outra porta, aberta, dava para uma saleta na qual eu podia ver uma maca, a clássica escadinha e uma balança antiga, mas reluzente, daquelas com um medidor de altura acoplado.

A balança e a escadinha estariam meio fora de lugar na modernidade do consultório, não fosse a construção do início do século. Pensando melhor, era o meu dia que destoava do consultório com ar-condicionado e persianas branquíssimas — o metrô cheio, o descabelamento, o suor escorrendo pelas costas, minha calça jeans de barra desfiada, o All Star dourado encardido que eu amava tanto, meus colares artesanais. Eu inteira destoava.

Enfim, depois de alguns minutos olhando meus exames, a médica virou a cadeira branca e ficou de frente para mim.

— Sua tireoide está sob controle, mas sua glicemia está alterada.  Você fez a curva glicêmica e não está com diabetes.

— É. A glicemia deu alterada e minha gineco achou que era bom já fazer a curva glicêmica. Ainda bem que não estou diabética. — Falei meio sem graça.

— Seu colesterol está próximo do limite.

— Eu sei. É a primeira vez que chega perto do limite. Já comecei a controlar a alimentação.

— Você também tem um sobrepeso significativo. Precisa perder peso.

— Eu sei. Nunca fui magra, magra, mas meu peso era normal. Aí tive um problema no joelho há alguns anos e parei de me exercitar. Eu dançava, sabe? Dava aulas de dança. Depois tive problemas com ansiedade por bastante tempo e aí veio o hipotireoidismo. Nessa brincadeira toda,  engordei  quase 20kg. Mas já tô domando a ansiedade e retomando os exercícios.

Ri, meio sem graça, como quem se desculpa. Dra. Alice balançava a cabeça, parecendo concordar com o que eu dizia.

— Vou te receitar um remedinho pra ajudar.

Devo ter erguido as sobrancelhas.

— Eu não tinha pensando em remédio pra emagrecer. Minha ideia era fazer acompanhamento do meu problema da tireóide, porque uma irmã minha teve um nódulo maligno então, acho bom acompanhar... E não gosto da ideia de tomar remédio pra emagrecer, nem acho que seja necessário, acho que posso emagrecer sem remédio. Eu me alimento bem. Com uma rotina de exercícios e reduzindo as porções, acho que consigo perder peso.

A médica continuou, prática e inabalável.

— Vai demorar até você se disciplinar. Sei como é isso. Você já ouviu falar de Xenical?

— Sim, uma amiga tomou há alguns anos e passou por uns constrangimentos por causa dele.

— Então ela não seguiu as orientações médicas. Você só passará por isso se não seguir a dieta que eu recomendar.

— Eu sei, nada de gordura. Não farei isso. Não comerei salada sem azeite.

Ela digitou mais alguma coisa em seu computador de tela ultra slim e me olhou, sem virar a cadeira.

— É, enquanto estiver tomando, precisa controlar, senão vai passar vergonha. — E continuou a digitar. Por fim, ouvi um leve ruído de impressão e ela se virou para trás, girando a cadeira em um movimento breve, com seu jeito preciso e econômico, pegou um papel em uma impressora que eu nem tinha visto e voltou a virar a cadeira em minha direção.

— Pronto, tá tudo aqui escrito. É só seguir. Basicamente você não deverá consumir gorduras. Então, nada de queijo e presunto no café da manhã.

— Não como carne.

Ela abriu um pequeno armário branco, ao lado da mesa, e dele sacou algumas caixas de medicamento, enquanto falava. — Salame, bacon, essas coisas, também não pode.

— Não como carne. — Confesso que elevei um pouco o tom de voz.

— Tenho aqui umas amostras para você. Tome 1 cápsula junto com as principais refeições. Isso dará para três semanas. Depois volte aqui para conversarmos. Enquanto estiver tomando a medicação, terá de cortar pratos como feijoada, por exemplo, esses pratos assim, ricos em embutidos e carnes gordurosas.

– Não como carne. — Quase sussurrei. Quem sabe, fazendo alterações perceptíveis no tom de voz...

— Você também terá de cortar queijos, manteigas, requeijão e outros produtos desse tipo. Queijo só frescal, preferencialmente na versão light, e ricota.

— Hummm.

— Frituras também estão proibidas enquanto durar o tratamento.

— Não como frituras. — Reagi — Olha só, como te disse, eu me alimento bem. Como coisas integrais, muitos legumes, verduras, frutas, nada de frituras e nada de refrigerantes há anos...

Não sei se ela me ouviu, mas acho que sim, pois me olhou com certa indulgência.

— Então... — Ah, a arte paulistana de transformar o advérbio em interjeição para deixar recados nas entrelinhas! — Vou te sugerir que corte também salgadinhos, amendoinzinhos, batatinhas fritas. Essas coisas todas ...

— Hummm

 Biscoitos recheados, bolos, chantily, Nutella e coisas assim também estão proibidos.  Você pode consumir, de lanche, bolacha Maria, ou Maizena, quando der muita vontade, mas duas ou três de cada vez, nada de comer um pacote inteiro.

Enquanto ela falava, eu lia a dieta que ela me prescrevera. Uma lista de alimentos proibidos, outra de alimentos permitidos – margarina  — e algumas sugestões de refeições.

Àquela altura tive vontade de esmurrar a mesa e gritar que há mais de cinco anos eu fazia meu próprio pão integral e não comia nenhuma daquelas merdas industrializadas, que biscoitos, recheados ou não, não faziam parte da minha dieta há quase uma década, que eu odiava chantily, que preferia minha cota de Nutella em vinho e que ela poderia pegar aquele computador slim, aquela sala slim, aquela porra daquele pensamento slim e enfiar no rabo. Por alguns segundos delirei, raivosa, imaginando a Bela Gil me entrevistando, almoçando comigo e falando que eu era um exemplo de como é possível comer saudavelmente, plantar as próprias verduras, comer grãos integrais, consumir religiosamente pelo menos 5 porções de verduras, legumes e frutas por dia... E a Dra. Alice na casa dela, ligando ocasionalmente a TV e se deparando comigo, a Bela Gil falando de mim como exemplo de boa alimentação.

O devaneio durou alguns segundos, enquanto ela falava. Quando ela parou, olhei-a ingenuamente.

— Coca-cola eu posso tomar?

— Se for light, pode.

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